Minha história de vida, se fosse contada por um comediante em um show de stand-up, por um bom, bom não, por um ótimo comediante, o melhor que já existiu, talvez arrancasse algum riso dos telespectadores, risos contidos e não gargalhadas. Um pouco daquele riso nervoso, repleto de ironia, que se misturaria às lágrimas e aplausos, mas penso que outras emoções, daquelas menos toleráveis, tenham mais chance de aparecer.
Somos filhas da professora Ana Brandão de Castro e do advogado Augusto de Castro. Trigêmeas. Nossa avó materna repetia quase como que em uma ladainha nos almoços da família que tinha errado só a quantidade de bebês, mas que jamais teve dúvida quanto ao sexo. Era tão grande a empolgação da velha quando falava desse assunto, que parecia que tinha tirado a pedra maior no bingo da quermesse, pois se repetia quase que de forma orquestrada assim como o pêndulo do relógio fixado no alto da parede da sala.
Primeiro nasceu a Juliana e depois a Mariana, só então veio a surpresa. Meia hora depois de a gente nascer, o médico chamou meu pai e disse que havia mais um bebê. “O rosto do seu pai se iluminou novamente na esperança de que fosse um menino”, contava a nós uma velha senhora que era nossa vizinha e que, como enfermeira, auxiliou no parto no dia do nosso nascimento.
Crescemos em um lar repleto de regras: meninas não fazem isso, meninas não fazem aquilo, isso não é coisa para meninas... “Teremos mais três professoras na família”, diziam os parentes. Era como se os nossos destinos já tivessem sido traçados desde que abrimos os nossos olhos pela primeira vez, mas toda família tem seus percalços e três é um universo de possibilidade bem grande para que se tenha uma ovelha negra.
Ah, Poliana! “A Poliana joga que nem moleque!”, esbravejavam meus avós que moraram de frente de nossa casa até o falecimento. E ela fazia muito mais do que jogar futebol na rua com os meninos. Aliás, jogava melhor do que muitos. Ela também subia nos pés de manga e laranja que ficavam nos fundos da nossa casa com destreza e embarcava em qualquer aventura que lhe despertasse o interesse.
Meu pai sempre foi conivente com quase tudo que nossa irmãzinha fazia. Sei lá o porquê. Foi ela quem ganhou uma bicicleta primeiro. Só depois de seis meses é que nosso pai, já sem argumentos, deu-nos uma única bicicleta que deveria ser partilhada pelas duas mais velhas.
Embora fôssemos nós que viemos primeiro ao mundo, nunca recebemos um tratamento diferenciado como primogênitas que somos porque era sempre a Poliana que tinha prioridade em quase tudo para nosso pai e, em vários momentos, com nossa mãe também. Na escola ela era popular com os garotos, tinham várias amigas e amigos, entretanto nas notas nós éramos as melhores. Poliana era, quando muito, mediana, mas nem isso perturbava nossos pais. Um “c” dela tinha o mesmo peso dos nossos incontáveis “as”.
E assim, nós duas crescemos com o sentimento de que a nossa irmãzinha Poliana sempre foi a favorita, embora eu tenha certa impressão de que talvez minha outra irmã não pensasse assim. Pelo menos, não na maioria das vezes.
Na escolha da faculdade, nenhuma surpresa. Nós duas escolhemos pedagogia para seguir os passos da mamãe, Poliana escolheu arquitetura com o aval de nosso pai.
Sempre acho estranho quando penso nisso. Não consigo lembrar da formatura da Poliana, nem mesmo dos anos que ela passou na faculdade, não me recordo de nada desse período. É como se todo esse tempo tivesse sido apagado, deletado das minhas lembranças. E agora, eu encontro a Poliana, já adulta, assim como eu. Ela continua bonita. Pena que não foi só a boa aparência que se manteve pois, infelizmente, ela continua a mesma, não mudou nada, ainda é a ovelha negra dessa família, porque tenho a impressão, e talvez apenas eu saiba disso, de que ela espalha um veneno em doses homeopáticas que contamina a todos, deixando-os completamente cegos. A mim ficou a responsabilidade de vigiá-la, pois apenas eu permaneço imune a seus feitiços. Ela sabe que eu estou de olhos bem abertos para tudo que ela está fazendo aqui hoje, mesmo assim parece não se importar. Talvez, depois dessa noite, tenha intenção de sumir novamente das nossas vidas.
Era um jantar para celebrar a vida. Minha irmã e seu marido anunciariam que meus pais seriam avós e que eu e Poliana seríamos tias. É, foi isso que fez com que minha irmãzinha sem vergonha saísse sei lá de qual buraco em que havia se enfiado e desse o ar da sua graça. Ela esteve tão ausente de nossas vidas que se alguém me contasse que havia morrido, eu não me surpreenderia.
As conversas se desenrolavam na mesa de jantar, mas eu estava tão distante do assunto quanto poderia estar. Minha cabeça fervia em um turbilhão de pensamentos e questionamentos: “Será que a indignação que sinto por quase tudo que Poliana faz desde a infância está confundindo meus sentidos?”. Difícil de acreditar que alguém possa paquerar o marido da própria irmã assim, na frente da família toda...
Volto minha atenção para as conversas em torno de mim. Por um momento, cesso meu diálogo interno. Para voltar a mim, sacudo a cabeça violentamente quatro ou cinco vezes para cada lado. Meus cabelos longos e pretos caem sobre meus olhos verdes e mesmo com o campo de visão prejudicado pela farta cabeleira percebo que todos ficaram assustados.
Mamãe levantou-se e veio até a mim, colocou a mão em meu ombro direito perguntando se estava tudo bem. Meneei a cabeça positivamente, mas fiquei sem entender por que tanta preocupação.
Enquanto isso, Poliana e meu cunhado deixavam escapar alguns sorrisos suspeitos de canto de boca, o que me fez experimentar um sentimento novo com relação à caçula que até então eu não tinha experimentado... ódio, ódio puro.
Era quase incestuosa a cena que se desenrolava ali na minha frente: a cunhada pervertida e o cunhado cafajeste trocando olhares insinuantes na mesa de jantar! Eu me perguntava: “Será que só eu estou vendo isso?”
O relógio velho e preguiçoso na parede aponta para as vinte horas precisamente. Olhei tanto para o aparelho que todos perceberam e imediatamente a atmosfera ficou um pouco pesada. Ainda bem que minha irmã me salvou anunciando para todos o motivo especial daquele jantar.
O sorriso do meu pai foi de um canto ao outro da boca, provavelmente já estivesse sonhando com a possibilidade de ter um neto homem. Eu desejei parabéns sem me levantar da cadeira, soou meio frio e indiferente. Não era o que eu queria passar. Estava feliz pela minha irmã, só não consegui me expressar corretamente naquele momento. Já minha mãe não se conteve, banhou o rosto em lágrimas, embora, com certeza, já estivesse consciente da gravidez da minha irmã. Mas ela, claro, tinha que fazer diferente... Poliana se levantou, abraçou meu cunhado e juntos ergueram copos com suco. Ela disse: “Em consideração ao bebê, que tal se hoje ninguém mais tomar vinho?” “Até parece que você se importa com essa criança. Se a considerasse tanto, estaria flertando com o pai dela agora?” foi o que pensei ao levar meu copo à boca. Enquanto isso, o futuro pai discursava ao lado da cunhada. Será mesmo que isso é confuso só para mim?
Será que eu deveria bater na mesa para chamar a atenção de todos ali e perguntar aos meus pais se eles não enxergavam tudo aquilo acontecendo bem diante dos olhos deles? Questionar o porquê de meu pai deixar que uma filha dele fosse tão humilhada, enquanto a outra se comportava como uma verdadeira puta? Logo o meu pai que sempre presou pela moralidade. E minha irmã, porque aceitava que o marido flertasse com a Poliana, agindo como uma verdadeira idiota?
Senti um grande calor me queimando por dentro. A raiva estava ficando incontrolável, meu coração pulsava em um ritmo desgovernado, minha boca estava seca, a taquicardia me angustiava... Buscando controle, passei os dedos pelo cabelo. Esse gesto simples sempre me acalmava, mas dessa vez, ao invés de alinhá-los comecei a emaranhá-los. Parei apenas quando identifiquei com as pontas dos dedos uma saliência na lateral esquerda da minha cabeça... uma cicatriz, provavelmente. Fiquei confusa “Como assim uma cicatriz? Como pode haver algo assim na minha cabeça? Ferimento? Cirurgia? Desde quando isso está aqui?”. Novamente minha agitação chamou a atenção de todos. Minha mãe se levantou novamente, mas desta vez ela não veio até mim, foi até uma escrivaninha que ficava ao lado da escada que dava acesso ao andar superior da casa. Abriu uma gaveta e retirou uma caixa predominantemente verde, com faixas amarelas e vermelhas. Abriu-a e olhando para meu pai mostrou a embalagem vazia. Em resposta, ele franziu a testa e disse que buscaria outra imediatamente. Levantou-se e saiu apressado. Aliás, não entendi por que tanta celeridade já que a farmácia ficava a uma quadra da nossa casa. Segundos depois, escutei o ranger das dobradiças do velho portão de ferro, abrindo e fechando.
Minha mãe voltou a se sentar à mesa, mas o clima não estava mais tão animado. Poliana me fuzilava, parecia que queria me matar, fiquei com a nítida impressão de que realmente o faria se tivesse oportunidade. Ela acabou saindo da mesa e subiu a escada para o segundo andar, onde ficavam os quartos. Mamãe e meu cunhado foram para a cozinha. Fiquei uns dois minutos ali, parada, tentando entender tudo. Então, retirei as mãos dos meus cabelos e subi sorrateiramente a escada. No fim do corredor ficava o quarto da Poliana quando éramos jovens, o único com uma sacada para a rua, claro! Era a queridinha do papai e tinha o melhor quarto da casa. No momento, aquele era o único cômodo com luz acessa ali em cima então ficou óbvio para mim que ela estava lá. Entrei e ela nem percebeu. Estava na sacada, em pé, olhando para a rua.
Um pensamento cresceu dentro de mim. Algo que estava ali desde que vi Poliana mais cedo, bastava ceder a esse impulso e eu resolveria esse imbróglio familiar imediatamente.
Talvez eu tivesse pensado primeiro em dar um susto nela. Talvez! Quem sabe eu tivesse acreditado que ela somente se machucaria. Quem sabe! É claro que racionalmente eu sabia o que poderia acontecer se alguém caísse daquela altura. Ainda mais com uma grade de ferro lá embaixo. Talvez eu tenha imaginado que alguma lei desconhecida da física poderia afastá-la das lanças pontiagudas que davam acabamento superior no portão. É possível!
Apressei meus passos, mas ela percebeu minha aproximação, virou-se e me fitou. Em seus olhos percebi uma mistura de descrença e medo. Sem entender por que eu estava empurrando-a, tentou pegar nos meus braços, mas me desvencilhei rapidamente. Feito. Estava tudo resolvido. Eu havia acabado com tudo.
Olhei para baixo e ouvi um homem gritando. Um grito desesperador. Claro, era meu pai vendo a sua filhinha querida empalada na grade. Virei-me calmamente para sair daquele quarto que parecia estar parado no tempo. Sempre limpo, embora tudo lá dentro demonstrasse que não era usado por ninguém a tempos. Já na porta, meu olhar foi atraído por uma foto de Poliana que tinha sobre si uma legenda escrita em letras maiúsculas: PARA SEMPRE EM NOSSOS CORAÇÕES.
Deixei o quarto e desci a escada. Ouvi todo grito e choro que vinham de fora. Identifiquei como sendo de minha mãe, meu cunhado e meu pai. Não ouvi em nenhum momento a voz de minha irmã grávida.
Lá embaixo, parei de frente à escrivaninha, peguei a caixa de remédio vazia em minhas mãos e perguntei a mim mesma: “Quem da minha família está tomando Clozapina?”.
_______Pedro Trajano
* Clozapina (substânca ativa) é indicado em pacientes com esquizofrenia resistente ao tratamento, isto é, pacientes com esquizofrenia que não respondem ou são intolerantes a outros antipsicóticos.
Fonte: https://consultaremedios.com.br/clozapina/bula
Este conto intrigante explora as complexidades de uma relação familiar conturbada. A história mergulha na dinâmica entre as irmãs, revelando ressentimentos, favoritismos e segredos ocultos. O texto nos envolve em uma narrativa repleta de emoções e suspense, mantendo-nos cativados e ansiosos para descobrir os desdobramentos dessa trama familiar. É um conto que provoca reflexões sobre relacionamentos e o impacto que nossas ações podem ter sobre aqueles ao nosso redor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário