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segunda-feira, janeiro 20, 2025

O Círculo da Luz

Acordou dentro de um bosque sombrio. O ar denso e frio da noite lhe arrepiava os pelos do corpo. As mãos estavam muito frias, contrastando com o calor escaldante lhe percorria as veias. Descalça, cabelos soltos e revoltos, no corpo apenas uma longa camisola branca cuja barra que lhe chegava aos tornozelos parecia parcialmente queimada. Confusa e desnorteada Estela se perguntou em voz alta:
— Como cheguei aqui? Onde estou?
O lugar era uma visão estranha, inquietante e aterrorizante, tal qual um cenário mal construído para um filme de terror. 
O bosque se estendia como um labirinto esquecido, parado no tempo. As árvores eram gigantes pareciam estar ali a uma dezena de gerações. Com troncos marcados por rachaduras que pareciam ter sido esculpidas por garras afiadas e galhos retorcidos que formavam um teto desigual. Fragmentos de um luar frio e distorcido mal conseguiam penetrar e atingir o chão. Raízes grotescas e expostas estendiam se pelo solo, parecendo serpentes, entrelaçando-se com pedras gastas e trincadas que formavam caminhos aparentemente sem destino. Algumas pedras estavam cobertas de musgo, enquanto outras exibiam manchas escuras, parecidas com sangue seco, testemunhas de que algo de mau aconteceu ou continuava acontecendo ali.
Estela virou a cabeça para a direção norte do bosque, e ficou paralisada ao ver grades de ferro enferrujadas que se erguiam como dedos deformados apontando para o céu como um ato de despontamento. A alguns metros daquelas grades ela enxergava um casarão em chamas que projetava fumaça muito acima das copas das árvores. O jardim diante daquele local era uma paisagem morta, repleta de flores petrificadas em tons cinzentos. De dentro da casa, o som grave de gritos ecoava, cada berro trazendo um arrepio cortante.
Estela inexplicavelmente teve a sensação de que distinguia os gritos como sendo de pessoas que ela conhecia. “Mas de quem?” Pensou ela desorientada.
Uma brisa carregada e enfadonha trazia o cheiro metálico de ferro e o aroma doce e podre de folhas em decomposição. As janelas do casarão brilhavam com chamas internas que pareciam olhos vigilantes.
Estela desviou o olhar para o centro do bosque, onde uma fonte quebrada exibia água estagnada, negra como um pântano. Ao redor dela, estátuas mutiladas de anjos pareciam congeladas em expressões de sofrimento tão vívidas que quase podiam implorar por socorro. Uma delas estava sem rosto; outra segurava uma lança partida ao meio. O chão ao redor da fonte estava coberto de folhas mortas, formando um tapete que abafava seus passos.
Entre as árvores, a escuridão não era apenas a ausência de luz; era uma presença consciente, sobrecarregada. Zumbidos escapavam de lugares invisíveis, e olhos vermelhos vigiavam-na entre os galhos, como predadores à espreita. Eles deslizavam lentamente entre as árvores, observando e calculando. Por vezes, um deles brilhava intensamente por um instante antes de desaparecer novamente no breu.
Tudo no bosque era um contraste torturante: o silêncio gritava, e a luz se ocultava. Estela estava com tanto medo que já não sentia seu coração pulsar, o frio aterrorizante parecia ter congelado o seu sangue.
Ela pensou em gritar, mas se conteve, pois não tinha certeza se quem ouvisse seu pedido de socorro seria solícito consigo, já que a sensação que tinha era de que ali ela não passava de uma espécie de presa ou oferenda.
Uma sombra se moveu entre as árvores, diferente de tudo que Estela tinha visto ou imaginado até aquele momento. Sua silhueta lembrava a de um homem. Ele caminhava em ziguezague ereto e sobre duas pernas, desviando dos poucos raios de lua que conseguiam atravessar as copas densas, preferindo a escuridão completa. Estela recuou dois, três passos, sentindo o pânico subir pelo peito. Pensou em correr, mas para onde? A pergunta ressoou em sua mente, sem resposta.
O desespero a envolveu, paralisando-a por um instante, era como se raízes indetectáveis surgissem do chão para agarrá-la, mantendo-a presa àquele lugar. Ela forçou o olhar para a distância, ao sul do bosque, e finalmente notou, cerca de cem metros adiante, uma pequena clareira. A luz da lua iluminava um espaço irregular não muito grande, talvez uns quatro metros de uma extremidade na outra. Sem hesitar, e com muito esforço ela desprendeu seus pés daquelas amarras invisíveis e começou a correr.
O medo pulsava em suas veias, cada passo mais rápido que o anterior. Atrás dela, a escuridão parecia ganhar vida, preenchida por sons inquietantes – galhos se partindo, folhas sendo esmagadas, como se algo estivesse se aproximando, sussurros que pareciam murmurar o seu nome.
Ela não ousava olhar para trás; o pavor transformava-se em combustível para suas pernas. A clareira parecia tão distante quanto uma promessa de segurança. A cada passo, o som de algo terrível ficava mais próximo, gerando um delírio que a fazia duvidar de sua capacidade de alcançar o destino.
Os metros que a separavam do círculo de luz pareciam infinitos. Com um último esforço, quase tropeçando, Estela finalmente alcançou o espaço iluminado. Seus pés tocaram a área banhada pela luz, e ela parou, ofegante, lutando para recuperar o fôlego, mas o ar não chegava até os seus pulmões. Atrás dela, o som cessou abruptamente, como se a luz tivesse criado uma barreira que mantinha o que quer que estivesse à espreita afastado. Mas ela podia sentir que eles estavam lá.
O círculo de luz parecia uma ilha de tranquilidade em meio ao oceano de trevas que dominava o bosque. O chão, coberto por uma fina camada de grama rasteira e verde e algumas folhas secas, parecia mais firme e acolhedor ali. Não havia raízes salientes ou pedras traiçoeiras; era como se aquele espaço tivesse sido cuidadosamente preservado, alheio ao caos que reinava ao redor.
Dentro do círculo, Estela sentiu um raro alívio. O ar era mais leve, quase sereno, e o silêncio, embora inquietante, era preferível ao zumbido opressivo que vinha da escuridão. Contudo, o medo ainda a envolvia. Seus olhos não conseguiam evitar sondar a escuridão ao redor, onde ela sabia que algo terrível a observava. A luz lunar parecia sua única defesa, uma barreira intransponível que separava a segurança do perigo.
Mas uma dúvida crescente corroía sua mente: e quando a lua fosse embora? A ideia da escuridão avançando e engolindo aquele refúgio a fazia tremer. Com o coração disparado, Estela contou o tempo, cada segundo parecendo uma eternidade. No entanto, algo peculiar chamou sua atenção: mesmo após o que ela estimou ser mais de duas horas, a luz permanecia exatamente onde estava, como se a lua tivesse congelado no céu, desafiando o movimento natural do cosmo.
Ela desviou o olhar para os próprios pés, só então percebeu os cortes profundos que deviam ter surgido durante sua corrida frenética. As feridas estavam abertas, mas estranhamente não havia sangue, como se o medo tivesse roubado a sua condição de sangrar, ou como se algo mais estivesse agindo sobre seu corpo. A sensação era tão surreal, mas Estela não encontrava resposta lógica para aquela situação. Talvez fosse melhor forçar em como sair dali com vida, pensou ela.
A jovem mulher não se conteve. Um grito rasgou sua garganta, misturando ódio, medo. Sua voz ecoou pela imensidão do bosque, reverberando como um grito de desespero em um mundo hostil. As sombras ao seu redor se agitaram violentamente, como se despertadas por sua fragilidade exposta. Criaturas ocultas entre as árvores começaram a se mover novamente, olhos brilhantes piscando na escuridão.
De repente, um frenesi tomou conta do ambiente. Pássaros, até então camuflados na escuridão, levantaram voo em um coro desordenado, o bater frenético de suas asas varrendo folhas secas do chão como uma tempestade improvisada. Era impossível contar quantos eram; o ar ficou pesado com o ruído de suas asas.
E então, como um prelúdio do pavor, surgiu outro som. Uma música horrenda, aguda e dissonante, como se cordas fossem arrancadas de um instrumento desafinado por mãos cruéis. O som parecia vir de todos os lugares e de nenhum ao mesmo tempo, como se o bosque estivesse vivo, cantando uma canção de angústia para recebê-la. A música parecia sussurrar nas entrelinhas da loucura, sua melodia distorcida rasgando a escuridão predominante com versos fragmentados, quase zombeteiros:


Pelos passos perdidos na sombra,
Na escuridão tua culpa te assombra.
Estamos aqui, à espreita como fera,
Estela, Estela, a gente te espera...


Os sons oscilavam, ora próximos, ora distantes, como ondas quebrando em um mar repleto de tensão. Cada palavra ecoava em sua mente, pesada e fria, arrancando arrepios que percorriam sua espinha. Era como se a atmosfera daquele lugar macabro se apoderasse de sua consciência, cantando diretamente para ela, cada nota carregada de um significado sombrio, insinuando um destino que a rodeava, mas que Estela ainda não era capaz de compreender.
Paralisada, Estela sentiu as pernas cederem. Tremendo, deixou-se cair ao chão, incapaz de reagir. Seu corpo exausto, finalmente sucumbiu ao esgotamento.
Seus olhos se fecharam, ela esperou pelo pior, a mente vagando entre o sobrenatural e a razão, no entanto o sono a envolveu como um manto pesado, arrastando-a para um abismo de subconsciência enquanto tudo ao seu redor ainda pulsava como caos, e o bosque a esperava acordar.
A sensação era de sufocamento. Desesperada, Estela passou as mãos pelo pescoço, tentando se livrar do que parecia ser uma corda que se apertava cada vez mais, esmagando sua garganta, mas não encontrou nada. Quanto mais ela se debatia, mais opressivo aquilo se tornava, como se uma força cruel se deleitasse com sua agonia. O ar fugia de seus pulmões, e a certeza de uma morte iminente a envolvia.
De repente, Estela despertou ofegante, o peito arfando em busca de oxigênio que parecia nunca ser suficiente. Tossia e engasgava, os olhos arregalados enquanto instintivamente segurava o pescoço, como se esperasse encontrar marcas de um aperto. Sentada no chão sobre a grama, quis chorar, mas as lágrimas não vieram. Era como se suas glândulas lacrimais estivessem se negado a cooperar.
Tentando reunir forças, ela se ergueu com dificuldade, os movimentos trêmulos e desajeitados. Mais uma vez, levou as mãos ao pescoço, sentindo a pele fria e tensa. O sonho havia sido tão vívido que, mesmo desperta, a pressão ainda parecia real, como se o pesadelo tivesse deixado um resquício físico em seu corpo. A sensação de estar à beira da morte permanecia gravada em sua memória, cada detalhe ainda muito nítido.
Estela olhou ao redor. Tudo no bosque permanecia exatamente igual, como se o tempo tivesse parado durante seu sono. No entanto, ela tinha a estranha percepção de que aquele instante não era apenas o agora; parecia que ela havia dormido por um tempo indeterminado. O peso dessa ideia absurda a fez duvidar da sua sanidade.
Olhou para o chão, como se procurasse confirmar que aquele lugar era real, se convencendo da realidade ao sentir a aspereza da grama na sola dos pés. Ao longe a casa continuava em chamas, mas os pássaros, tinham desaparecido. No entanto, a sensação de que criaturas a observavam, escondidas atrás das árvores, permanecia intacta. Outra coisa que não havia mudado era o círculo de luz onde ela estava, com o mesmo tamanho e as mesmas bordas irregulares.
— Estela... Estela!
A voz surgiu da escuridão, um sussurro carregado de familiaridade. Estela reconhecia aquela tonalidade vocal de algum lugar, de algum tempo distante. Era uma lembrança nebulosa, mas concreta, não exatamente boa, apenas conhecida.
Ela se virou em direção ao breu, na penumbra do bosque onde observou aterrorizada uma silhueta imóvel, a mesma que ela viu antes de sair em disparada:
— Estela! — A voz chamou novamente, sem se revelar à luz.
— Quem está aí? — Ela indagou, preenchendo-se de uma coragem inesperada, que se dissipou quase no mesmo instante.
— Sou eu, Gaspar! — A voz soou do lado de um grande tronco de figueira, cuja a copa chegava ao limiar do círculo de luz onde Estela se encontrava.
O nome atingiu Estela como um golpe. Ela recuou um passo, insegura. A voz e o nome trouxeram uma memória que emergia das profundezas de sua mente. Gaspar Perossi Filho. Um comerciante influente de São Paulo, ligado às elites latifundiárias, grande produtor de café e com boas relações com a coroa portuguesa. Estela emudeceu.
— Você ainda se lembra de mim? — perguntou a voz, enquanto um murmúrio inquieto surgia das sombras ao redor.
De repente, a melodia. Novamente aquela música que para ela vinha das profundezas do inferno...


Pelos passos perdidos na sombra,
Na escuridão tua culpa te assombra.
Estamos aqui, à espreita como fera,
Estela, Estela, a gente te espera...


O som dessa vez era baixo, mas continuava perturbador, uma repetição da cantorina que ela ouvira antes de cair no sono. Mas o homem gritou. Um brado firme, autoritário, cortando o ar. O murmúrio cessou instantaneamente, devolvendo ao local um silêncio absoluto e opressivo.
O alívio foi breve; Estela sentiu ainda mais medo, afinal que tipo de pessoa é capaz de calar o terror da escuridão?
Lembrou-se então de um homem que tinha o poder de determinar às pessoas do seu círculo a hora de falar e de se calar, e que ela era uma das pessoas que o obedecia.
— Há quanto tempo estou aqui? — A pergunta escapou de seus lábios de forma hesitante, o silêncio entre eles prolongando o desconforto. Ela completou num fio de voz: — Gaspar.
— Parei de contar há muito tempo. — Respondeu o homem.
— Como assim parou de contar? Você não sabe?
— Não quero saber. Desse lado, a ignorância muitas vezes é uma bênção.
Estela olhou para o céu imóvel. A lua permanecia estática, exatamente como estava quando ela chegou.
— A lua não se move... parece presa. Eu sequer lembro como vim parar aqui.
— Você chegou logo depois dos nossos filhos. E eu cheguei um pouco antes deles dois.
O chão pareceu ceder sob os pés dela. Estela riu, uma gargalhada nervosa, quase histérica.
— Nossos filhos? — A incredulidade em sua voz era cortante.
Gaspar a interrompeu, com a voz cada vez mais sombria:
— Eu tinha certeza de que nossa filha estava segura, de que eu não seria capaz de fazer nada com ela... com ela, não. Eu acreditava que teria um limite para minha monstruosidade.
— Do que você está falando? Saia das sombras, seu covarde! — bradou Estela histericamente. — Seu louco, filho da puta!
— Você também acreditava que quando nossa filha começasse a tomar contornos de mulher, eu continuaria a vê-la apenas com os olhos de um pai amoroso. Enquanto era só com as filhas dos escravos, você fingia não saber o que estava acontecendo. — Continuou falando a figura em meio a escuridão.
— Filhas dos escravos... Eu sabia... Nossa filha... Do que você está falando? Questionava Estela insistentemente.
— Estávamos errados “Teca”. Um monstro sempre será um monstro, diante da luz ou da escuridão.
Aquele apelido foi recebido como um soco por Estela, pois recordou-se que só uma pessoa no mundo a chamava assim, e era o seu marido, nas raras vezes que demonstrava carinho por ela.
Estela permaneceu imóvel, sua mente num turbilhão. A incredulidade tola diante das palavras daquela figura ressoava em sua cabeça, enquanto ela tentava juntar as peças de algo que se recusava a fazer sentido. Instintivamente, seus pés se moveram, um tipo de irresponsabilidade ou curiosidade, conduzindo-a, sem perceber, até o limite do círculo de luz. Estela se aproximou de mais da escuridão.
—Não pode ser... sussurrou ela. O horror apertava-lhe o peito como uma espécie de força invisível. Tentou recuar, mas ele foi mais rápido. Num movimento certeiro, agarrou seus braços com força. Diante da dor do aperto Estela tentou retornar ao círculo de luz, mas era tarde demais. Ele a puxou com violência, arrastando-a para fora do círculo de luz, onde a escuridão de uma escolha se revelou.
Gaspar. O homem que era o pai dos seus dois filhos, seu marido. Mas também o homem que carregava em si uma podridão que transbordara. Estela sabia. Sempre soubera. As desconfianças começaram como sussurros ao vento: um toque incômodo, um olhar que demorava demais. Então, vieram os sinais em sua própria filha, sinais que reconhecera nas meninas escravas. Essas meninas, que a sociedade usava e depois descartava como se fossem coisas... ela estava do lado de quem escravizava, e mesmo se quisesse seria difícil protegê-las, mas também nunca desejou salvar nenhuma delas, estava satisfeita com sua vida confortável, no entanto sua filha era outra história, ali ela tinha um dever a cumprir...
Tentou confrontar a menina, arrancar-lhe a verdade, mas os olhos dela olhos de uma criança despedaçada, diziam tudo o que as palavras negavam. E assim a certeza se cristalizou: Gaspar havia cruzado a linha. Agora não havia volta.
Nos dias e semanas seguintes, uma ideia cresceu em sua mente como erva daninha: eliminar Gaspar. Primeiro pensou no veneno, mas parecia covarde. Um tiro seria mais limpo. Definitivo.
Ela planejou e executou.
Naquela noite dispensou os empregados e colocou as crianças para dormir mais cedo. Esperou pelo marido pacientemente. Gaspar chegou tarde, muito embriagado. Estela o recebeu com a voz doce, embora a vontade fosse de enforcá-lo com suas próprias mãos, mas precisaria de um pouco mais de paciência. Serviu-lhe o jantar, velas acessar sobre a mesa. O ambiente, embora calmo, parecia carregado de uma tensão.
Atrás da porta da cozinha, uma pistola de pederneira esperava, carregada e silenciosa, como se aguardasse seu momento, ela mesmo tinha carregado a arma do marido depois que as crianças dormiram e deixado cuidadosamente naquele lugar estratégico. Gaspar mastigava ruidosamente, cada som transformando-se em um martelo que golpeava os nervos de Estela, a tensão fez com que ela suasse mesmo diante da baixa temperatura do mês de julho. As chamas das velas agitavam com a brisa que entrava pela porta da cozinha aberta, projetando sombras grotescas nas paredes de madeira.
Enquanto ele estava de costas, jantando sem pressa, Estela puxou a porta discretamente e estendeu a mão. Seus dedos trêmulos e suados tocaram o metal frio da arma, o peso dela reforçando a gravidade do que estava prestes a fazer. Respirou fundo, sentindo o coração martelar no peito, e virou-se lentamente, segurando a pistola com ambas as mãos.
Mas então, no instante decisivo, a arma escorregou de seus dedos suados e caiu no chão com um estrondo seco de um pequeno trovão. O som partiu o silêncio da cozinha. Gaspar girou o corpo, a confusão em seu rosto rapidamente dando lugar a uma fúria contida. Ele se levantou, o olhar fixo na arma caída entre eles, mas Estela foi mais veloz.
Ajoelhou se rapidamente, pegou a pistola de volta, desta vez com firmeza e num único movimento ergueu a arma e puxou o gatilho.
O som do disparo ressoou pela casa.
O impacto da bala no peito de Gaspar, fez o homem cambalear, o olhar fixo nela, carregado de incredulidade e um último resquício de controle. Ele deu um passo vacilante, a mão buscando apoio na cadeira, mas foi em vão. Seu corpo desabou sobre a mesa com um baque seco, espalhando pratos e copos, enquanto as velas tombavam, lançando um breve clarão antes de iniciar o incêndio.
Estela permaneceu imóvel, o som do tiro ainda reverberando em seus ouvidos. Por um instante, temeu que o barulho tivesse despertado as crianças no andar de cima. Mas a casa voltou a mergulhar em um silêncio tão profundo quanto o que agora envolvia Gaspar, caído sobre a própria comida que espalhara pelo chão, o peito todo vermelho, e os olhos abertos encarando a esposa como se ainda tivesse alguma vida neles.
As chamas começaram a se alastrar, devorando primeiro a toalha e depois os móveis. Estela ficou parada por um momento, observando as chamas se transformando em grandes labaredas, e rapidamente subindo para o andar de cima. A fumaça e o fogo dominaram o ambiente, mas foi o grito das crianças que a arrancou da letargia.
Estela tentou subir as escadas, desesperada, as mãos agarrando o corrimão quente enquanto o calor parecia derreter sua pele. A cada passo, o rugir das chamas tornava-se mais feroz, engolindo tudo ao redor. Ela gritou pelos nomes dos filhos, mas as vozes das crianças já não eram ouvidas, abafadas pelo crepitar do fogo. A fumaça espessa fazia seus olhos arderem e seus pulmões queimarem.
Ela tentou avançar mais uma vez, mas as chamas bailaram à sua frente, como guardiãs implacáveis do caminho. O calor era insuportável, forçando-a a recuar com o rosto coberto pelas mãos, enquanto lágrimas misturavam-se ao suor que escorria.
Então, Estela soube. Não havia mais nada a fazer. O desespero deu lugar a um vazio gelado que se instalou no centro de seu peito. Ela recuou, as pernas tremendo, incapaz de suportar o peso do que havia acabado de perder. A culpa e o ódio a cegaram. Fora sua própria vingança que expandira a destruição à sua família.
Num ímpeto de sobrevivência, saiu correndo. Os pés descalços eram cortados pelos cacos de vidro espalhados em frente a porta, o cheiro de carne queimada oriundo do corpo do marido que estendido no chão era consumido por línguas de fogo era nauseante. Ela passou pela porta, e evadiu do local, não tinha mais nada pra ela ali, tudo estava virando cinzas.
Enquanto atravessou o corredor e saiu no jardim, o fogo atrás dela subiu alto, iluminando o céu como um farol perverso, atraindo testemunhas. Logo viriam as pessoas. Logo viriam as perguntas e Estela sabia que não tinha respostas, apenas o peso insuportável de sua própria ruína.
Estela parou no bosque à frente da casa. Sob o brilho pálido da lua, olhou para si, a camisola branca que usava estava com marcas de fogos, também haviam queimaduras nas mãos, e o calor que emanava do próprio corpo parecia uma extensão do incêndio, como se as chamas a consumissem de dentro para fora. O ar frio da noite não era suficiente para aliviar a ardência que sentia internamente.
Seus olhos pousaram em um balanço pendurado na grande figueira onde seus filhos costumavam brincar, muito próximo de uma fonte belíssima. Aquele bosque fazia parte da propriedade da família.
Com esforço, começou a arrancar a corda. Cada puxão fazia o nó parecer mais resistente, como se a corda também resistisse à sua decisão. Finalmente, a corda cedeu, suas fibras ásperas cortando os dedos de Estela enquanto ela a puxava com força.
Ela subiu na árvore robusta com dificuldade, os galhos arranhando sua pele já ferida. Escolheu um galho forte e resistente, a lua cheia iluminava um círculo irregular em frente a arvore anciã.
Com movimentos lentos e ruidosos, amarrou a corda ao redor do galho, ajustando-a com um laço firme. Enrolou a outra ponta ao redor do próprio pescoço, sentindo a aspereza contra a pele. Estela lançou um último olhar ao casarão em chamas. O brilho alaranjado iluminava os vultos dos vizinhos que corriam em direção à tragédia. Suas vozes se erguiam em um coro de desespero, chamando por Gaspar, por Estela, e, mais aflitos ainda, pelos nomes das crianças. Cada grito parecia carregar a esperança frágil de que alguém, qualquer um, respondesse. Mas da casa só vinha o som cruel do incêndio: o rugir voraz das labaredas consumindo tudo, o estalar das madeiras estruturais cedendo sob o calor insuportável, e o estrondo ocasional de paredes desmoronando.
O destino havia sido cruel, mas ela não ficara atrás. A esposa vingativa, a mãe amorosa, fechou os olhos, entregando-se à escuridão. Então, sem hesitar, saltou.
Estela caiu sentada dentro do círculo de luz, os braços se apoiando para trás, o olhar perdido. A frase ouvida há pouco, “a ignorância às vezes é uma bênção”, reverberava em sua mente com uma ressonância amarga. Agora fazia todo sentido. O arrependimento esmagador a tomou: desejava nunca ter descoberto a verdade, nunca ter visto a sombra daquele homem que dizia ser seu marido.
Mas enquanto teve as mãos seguras por ele, fora da luz, a figura mostrou-lhe, como um demônio sarcástico, os últimos passos de sua vida. Cada cena foi projetada de forma brutal em sua mente. Estela estremeceu, como se estivesse vivendo tudo outra vez, como se aquele ser estivesse retirando cruelmente o véu de sua própria negação.
A escuridão a sua volta era impiedosa. Ela ergueu os olhos, buscando o vulto que permanecia imóvel na noite eterna. Uma presença mais espectral que humana.
—Você disse que chegou aqui antes dos nossos filhos — murmurou, hesitante.
—Sim.
A figura não se moveu, mas a proximidade era tirana, como se a sombra ao redor dela se adensasse.
—Eles estão aqui? Neste inferno?
O vulto soltou uma risada amarga, seca, que repercutiu como folhas secas sendo esmagadas.
—E quem lhe disse que aqui é o inferno?
Estela engoliu em seco, sem conseguir desviar os olhos da figura.
—Eles... Eles passaram por aqui mesmo?
—Sim, mas não ficaram. “Anjos” não permanecem em lugares assim. Eles seguiram para onde a luz é plena, onde a dor não os alcança mais.
—Como eles estavam? — Estela hesitou após perguntar. O medo de ouvir uma resposta terrível, como ele dizendo que a s crianças estavam queimadas, ou algo parecido, apertava-lhe o coração.
— Isabel segurava a mãozinha de Antônio. Eles andavam como se soubessem que alguém muito bom os aguardava.
A voz do espectro mudou, adquirindo um tom quase afável, como se estivesse sorrindo ao descrever.
— Isabel vestia um vestido branco, com sapatos que combinavam. Os cabelos loiros, tão parecidos com os seus, estavam presos, mas alguns fios escapavam, dançando ao vento suave que acariciava seu rosto.
— Era a roupa que ela usou no casamento da prima... — murmurou Estela, a garganta apertada pelo choro que aquele lugar reprimia.
— Sim. E Antônio corria junto, do lado da irmã que ele amava, esforçando-se para acompanhar. Ele vestia um conjunto azul-marinho, calças curtas e camisa de linho com botões dourados. Os cabelos estavam curtos e perfeitamente penteados, e nos pés, sapatos pretos brilhantes, engraxados. Parecia feliz, mas concentrado, como se cada passo fosse uma missão.
O peito de Estela se apertou com uma mistura de alívio e saudade.
— Eles não tiveram medo de passar por este lugar sombrio?
— E quem disse que era sombrio para eles?
— Não era?
— Claro que não.
— E como era então?
O espectro hesitou, a voz assumindo uma profundidade pavorosa que reverberou no ar.
— Trevas e luzes sempre nos acompanham desde cedo. É o que escolhemos no outro plano que faz toda a diferença aqui.
O entendimento cresceu dentro de Estela, um clarão doloroso e inevitável. Ela se arrastou para trás, buscando distância da figura à sua frente.
— Você está... no inferno?
A figura fez uma pausa longa antes de responder:
— E onde mais eu estaria?
Estela sentiu o peso das palavras, o silêncio que se seguiu, e, antes de ousar falar novamente, a pergunta que a consumia tomou forma, como uma lâmina afiada nos lábios:
— Existe perdão... para o mal que fizemos aos nossos filhos? E para as meninas escravas que você abusou, e eu escolhi não ver, para manter a posição social da família?
A voz da figura ecoou sem emoção, como se não houvesse nenhum arrependimento.
— Existe perdão — respondeu com firmeza, sua voz carregada de uma neutralidade indescritível — mas ele deve ser buscado enquanto ainda se vive, antes que nossos olhos se fechem definitivamente para o mundo dos viventes.
Ela mordeu o lábio, sentindo o amargor da culpa que a consumia. Uma última pergunta escapou de seus lábios, quase como um suspiro, implorando silenciosamente para que ela não estivesse no inferno, que talvez ao menos, estivesse em algum lugar intermediário, já que estava muito claro que aquele lugar não poderia ser o céu... Não segundo as descrições que ela costumava ouvir nas missas dominicais, aquelas em que toda a família participava.
— E eu? Estou no limbo?
A figura não respondeu. Em vez disso, permaneceu em silêncio, sua presença lentamente se desvanecendo até se dissolver na escuridão.
Estela abraçou os próprios joelhos, puxando-os para perto do corpo, como se buscasse algum conforto em si mesma. Voltou o olhar para o alto, onde a luz da lua, já não tão pálida, parecia observá-la com uma quietude reconfortante. Ao baixar os olhos novamente para o círculo de luz, deixou escapar um sorriso tímido, carregado de algo que poderia ser otimismo
O círculo havia se expandido, poucos centímetros, mas de forma perceptível. Algumas folhas da velha figueira, antes ocultas pelas sombras, agora brilhavam sob a luz. Eram de um verde vivo, belo e vibrante, como se carregassem em si uma pequena promessa de esperança.


Pedro Trajano 
20 janeiro 2025
Penápolis SP

Um comentário:

  1. Muito bom, terminou deixando aquelo gostinho de quero mais, no aguardo do próximo capitulo

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Eu sou mais eu. Mas o meu eu tem empatia pelo seu eu. (Pedro Trajano)