O som dos pingos d’água batendo no chão é o primeiro som que ouço ao despertar. Abro os olhos e percebo que já é noite; o ambiente está escuro. As gotas continuam a cair em um ritmo compassado, como o pêndulo do antigo relógio da sala da casa dos meus pais. Embora isso já faça muitos anos, a lembrança persiste. Hoje, nem o relógio nem a parede onde ele estava pendurado existem mais, e acho que nem a casa, pois meus pais vivem apenas nas minhas memórias: algumas boas, outras nem tanto e elas vêm e vão de maneira fugaz.
Minha cabeça dói intensamente, como se os pingos batessem diretamente nela, que lateja por toda a circunferência como se estivesse prestes a explodir. A dor é quase insuportável, uma pressão como um cinto de ferro se expandindo de dentro para fora do meu crânio. Mas tenho que agradecer pelo escuro; luzes artificiais durante essas crises parecem penetrar minhas retinas e se alojar no cérebro, intensificando a dor como agulhas perfurando minha cabeça. É estranho; não me lembro de ter visto a noite chegar. Será que desmaiei aqui por causa da náusea? Preciso de um remédio.
Minha respiração está irregular e pesada, cada inspiração é um esforço, cada expiração um breve alívio. Não sinto cheiro algum; minhas narinas estão obstruídas, parece que estou com o peito congestionado. Minha mãe me mandaria fazer uma inalação imediatamente, o que seria a deixa perfeita para meu pai a acusar de dar mais atenção a mim do que ao meu irmão dois anos mais novo, o que seria um ledo engano.
Morando sozinho não tenho nem o aparelho de inalação. Preciso me levantar e ir ao banheiro para lavar as narinas com soro fisiológico; pelo menos isso eu ainda tenho. Ela me ensinou a usar aquele líquido desde a infância; parecia quase mágica! Num momento eu estava ofegante, no próximo respirava normalmente, como se um feitiço suave saísse daquele frasco e me curasse temporariamente.
O segundo som que ouço vem de dentro de mim. Sinto algo se mexendo, como se quisesse rasgar minhas entranhas e sair. É uma sensação primitiva, quase animal. Os pingos continuam a cair e a bater no chão; não tenho mais dúvidas de que o som vem do banheiro, e ele acaba por criar uma leve distração na minha mente, mas logo meu estomago pedindo por comida ganha a pequena batalha por atenção. Não me lembro de ter jantado, e nem sequer de ter almoçado, mas já é noite. Eu não costumo pular refeições. Preciso me levantar.
Preparo-me para o pior; que é levantar a cabeça durante uma crise de enxaqueca. Nessas situações quando me levanto, a sensação é de que minha cabeça explodirá, embora isso nunca aconteça. Ainda deitado, tento puxar o ar, encher o pulmão antes de me levantar e encarrar a dor absurda, mas o ar não chega como eu preciso e sou tomado pela sensação desesperadora de sufocamento. Em um reflexo instintivo, meu corpo vira cento e oitenta graus e ao abrir os olhos dou de cara com o teto branco do meu quarto. Movo a cabeça para a esquerda, confuso, e vejo que a janela está aberta, com a luz natural inundando o quarto. Ainda não é noite? O ar volta a passar pelas minhas narinas. Sento-me na cama e coloco os pés no chão, mas não sinto a superfície gelada. Estou de tênis, e constato isso ao olhar para baixo. Minha cabeça pulsa com dor e ânsia de vômito. Coloco minhas mãos nas laterais e pressiono por um tempo, o que sempre ajuda. Estou vestido com calça jeans e camiseta e observo o travesseiro amassado e molhado de baba. Droga! Eu estava com a cara enfiada no travesseiro. Isso explica a falta de ar e a sensação de que já era noite. Mas como vim parar aqui?
Um som agudo chega da cozinha e corta o ar, atravessando a parede e atingindo meus tímpanos. É um som metálico e penetrante, o terceiro desde que acordei. Se os pingos constantes eram incômodos, esse som faz vibrar meus nervos, elevando a dor de cabeça a níveis extremos. Minhas mãos tapam meus ouvidos, meus pulsos pressionam meu rosto, sinto o roçar de uma barba mal-feita; um descuido que seria suficiente para ganhar uma bronca do meu pai, e estou falando de agora, depois de adulto, e não de quando era criança. Mas posso ficar tranquilo, ele já se foi há muito tempo. Enfio a cabeça entre as pernas e travo os dentes, com baba escorrendo em um fino cordão que chega ao chão. Finamente identifico o bip irritante como o sinal de aviso de que a geladeira está aberta e considerando que ela só dispara depois de uns dois minutos se não for fechada, começo a questionar quanto tempo dormi e se há mais alguém na casa.
Preciso fazer um esforço sobre humano pra levantar e cada passo que dou causa um impacto, como uma martelada na minha cabeça. Vou até a porta do quarto pois preciso sair daqui ir até a cozinha e fechar aquela maldita geladeira. Até esqueço que estou faminto. Giro a maçaneta, mas a porta não abre. Tento mais uma, duas, três vezes até entender que a porta está trancada. Fico sem compreender nada. Coloco uma das mãos na boca, abafando um chamado por socorro que comecei a pronunciar instintivamente, interrompendo-o ao mesmo tempo em que me vem à mente a sensação de que, se há alguém mais na casa, pode não ser alguém que eu gostaria de encontrar. Talvez um ladrão. Recuo um passo. Como posso estar trancado dentro do meu próprio quarto? Será que alguém me trancou? Olho para a cama e vejo que o lençol não está todo amarrotado, concluo que dormi sem coberta. Eu nunca durmo sem coberta, nem mesmo nas noites de verão; minha mãe sempre me cobria com um lençol fininho que fosse quando eu era criança, eu tinha medo de ficar com os pés descobertos. Já meu irmão, que dormia na parte de cima da cama beliche, não precisava. Olhando a cama, chego à conclusão de que apaguei por completo sobre ela, um sono que poderia ser confundido com uma espécie de desmaio.
Ainda com a cabeça latejando, olho para a janela aberta e uma ideia me ocorre. Posso sair por ali, dar a volta e entrar pela porta da cozinha; se eu tiver sorte, talvez eu tenha deixado ela destrancada. Claro que preciso tomar cuidado; se tem alguém lá, preciso surpreender e não ser surpreendido. Aproximo-me da janela e sinto o ar fresco do final da tarde.
Quando estou prestes a sair pela janela, já apoiando as mãos no peitoril, lembro que dentro do meu guarda-roupa tenho uma caixa com alguns medicamentos. Volto na esperança de encontrar algum comprimido que alivie essa dor, abrindo as portas do guarda-roupa que começam a ranger. As velhas dobradiças enferrujadas não me ajudam a tentar ser o mais silencioso possível. Por fim, as portas se escancaram, revelando o interior bagunçado, com roupas e objetos jogados de qualquer jeito. Se minha mãe estivesse aqui, eu ganharia uma baita bronca, mas ela não está; já se foi. Meus olhos vasculham a confusão até encontrar uma caixa de sapato surrada que ela me deu para guardar meus remédios há mais de dez anos. O velho recipiente está coberto por algumas cuecas, espero que pelo menos sejam limpas. A caixa era para ser temporária, até eu comprar algo mais apropriado, o que nunca aconteceu.
Abro a caixa e vejo uma confusão de medicamentos: cartelas amassadas e algumas até rasgadas. Os comprimidos da embalagem vermelha são para as crises agudas de dor de cabeça e já estão no fim. As da embalagem azul, que deveriam combater os delírios, estão vazias, exceto por uma cartela esquecida no fundo, com apenas três comprimidos intactos. Há também uma cartela branca com comprimidos para dormir, pela metade, e outra amarela, sem embalagem, com alguns comprimidos desconhecidos. Tomo os dois últimos comprimidos da embalagem vermelha e, ao me virar abruptamente, uma tontura me abate. Preciso sentar na cama para não cair. Decido ficar um pouco ali, esperando a vertigem passar. Meu corpo relaxa, e, sem perceber, apago.
Quando desperto novamente, a luz natural se desvanecia, dando lugar a sombras alongadas e a penumbra da noite que se aproximava. Olho por debaixo da fresta da porta do meu quarto, e não vejo sinal de luz ou movimentação; a geladeira já não emite aquele sinal perturbador. Teria alguém a desligado, ou o tal bip parou te soar automaticamente depois de um certo tempo? Não foço ideia! Minha mente ainda está confusa, mas a dor parece ter passado. Não sei quanto tempo se passou desde que tomei os remédios; talvez tenha apagado por umas duas horas. Levanto-me devagar, tentando entender a situação. A sensação de desorientação persiste, e tudo o que quero é resolver o problema da geladeira, que agora não está apitando, mas pode voltar a fazer isso. Me lembro de que estou trancado, penso então no meu celular e começo a procurá-lo por cima da cama e depois dentro do armário. Se encontrar, poderei ligar para alguém, menos para o meu irmão; não quero dar a ele o prazer de saber que estou trancado dentro do meu próprio quarto e que tenho medo de haver alguém na casa. Decido não acender a luz como estratégia e aceito que o celular está em algum lugar fora deste quarto pois a busca é infrutífera.
Saio pela janela, sentindo o ar frio da noite envolver meu corpo. Já é noite, e a escuridão chegou depressa, como se quisesse me abraçar. Dou a volta na casa, passando pela calçada lateral que leva à área da cozinha. O chão ali é de concreto desgastado e rústico, nada que se possa chamar de aconchegante. A velha mesa de madeira permanece no meio da área, desprovida de toalha ou cadeira, apenas um pedaço de mobília abandonada e praticamente sem utilidade. Olho para o fundo do terreno e vejo que a horta, que era do inquilino anterior há cinco anos, está agora completamente tomada por ervas daninhas.
Aproximo-me da porta da cozinha suavemente, esperando que esteja destrancada. Coloco uma das mãos na maçaneta e giro lentamente, tentando ser o mais silencioso que posso, sem saber o que me espera do lado de dentro. Sinto o peso da frustração ao comprovar que a porta está trancada. Passo as mãos pela cabeça, desesperado, tentando entender o que está acontecendo; antes estava trancado no meu quarto, agora estou trancado fora da casa em que ainda moro, até que meu irmão a tome. Ouço novamente o som agudo da geladeira apitando, penetrando minha mente como um alarme de emergência. O pânico me toma por um instante; aquele bip ultrapassa as paredes internas. Para piorar, parece que ouvi passos do lado de dentro. Eu tinha quatorze anos quando assisti com meu irmão de doze o filme Psicose, em preto e branco. Fiz xixi na cama por quatro noites seguidas, e meu irmão, claro, contou na escola; meu apelido por anos foi “bebê mijão”. Prendo a respiração como se quem estivesse lá dentro pudesse ouvi-la. Se pelo menos eu estivesse com meu telefone!
Então, uma lembrança surge: a porta da sala. Há uma chance de que ela esteja aberta. Sem perder tempo, sigo silenciosamente para o lado oposto da casa; minha cabeça não dói mais. Quando chego à porta da sala, encaro a madeira velha e desgastada, marcada por anos de exposição ao clima. Respiro fundo e lembro que preciso de algo para me defender; não posso entrar desprevenido, está escuro e não sei o que me aguarda. Volto para a área da cozinha; ouço latidos que me assustam, este é o quarto ou quinto barulho que ouço desde que despertei. Se ouvi mesmo passos dentro de casa, este é o quinto barulho. O cachorro, um velho pastor alemão que ainda se vê como o guardião da casa do fundo, late algumas vezes e desiste. O morador daquela casa é o meu único vizinho. Moro no fim de uma rua sem saída; à frente da minha residência, apenas terrenos vazios e abandonados tomados por mato. Para quem chega, e olha para a minha casa, à direita há uma área verde, e à esquerda, uma casa abandonada em ruínas. O lugar é tão inóspito que, se alguém morresse gritando por socorro, se o senhor que mora no fundo não ouvisse, ninguém mais ouviria. Vou até o local onde antes havia uma horta e encontro um pedaço de ferro oco, um metalon em forma de tubo fino e enferrujado. Retorno segurando-o como se fosse a arma mais poderosa que eu pudesse empunhar.
Paro em frente à porta da sala novamente, olho a madeira corroída à minha frente, empunhando aquela barra de ferro enferrujada que esfarela nas minhas mãos. Giro a maçaneta com pouca esperança e, para minha surpresa, ela cede. Empurro a porta lentamente, tentando fazer o mínimo de barulho. O apito da geladeira e o gotejar do chuveiro dentro da casa são ainda mais fortes. Projeto meu corpo para dentro da casa e, de forma amadora, beirando a imbecilidade, acendo as luzes. Quando criança, brincava de esconde-esconde com meu irmão; ele sempre me encontrava rapidamente e dizia que eu fazia muito barulho, tornando fácil me encontrar. Já eu quase nunca o localizava; tinha vontade de matá-lo de tanta raiva por ele ser o melhor em tudo. Penso em apagar a luz novamente ou fugir, como sempre fiz na minha vida, mas fico petrificado na entrada da casa, uma presa fácil, quase indefeso. Por fim, entro no ambiente. Os cômodos são pequenos, uma sala conjugada com a cozinha: o sofá de três lugares, coberto por um pano laranja desbotado que serve como capa. Na parede, um painel com uma TV de 32 polegadas. Meu olhar vai para a cozinha, e lá está ela, a porta da geladeira escancarada. Em cima, noto um pequeno relógio vermelho sobre a geladeira, marcando 13:30, mas sei que isso não é possível; a pilha deve ter acabado. Se houver alguém, ele está escondido no corredor, no banheiro ou no quarto de hóspedes, já que o meu está trancado. Pode ser que alguém tenha me trancado no meu quarto. Não faz sentido, mas a possibilidade existe.
Avanço pela casa e dou uma passada de olhos mais minuciosa. Vejo a pia tomada por louças sujas, empilhadas de qualquer jeito, formando uma montanha de descuido. Uma pequena mesa de vidro com duas cadeiras ocupa o centro da cozinha, e na parede, um armário de ferro branco parece se desintegrar aos poucos. Aproximo-me da mesa e vejo dois pratos ali, com ovos mexidos intactos sobre eles, como se esperassem alguém para comer. Uma garrafa de café e uma xícara virada sobre a mesa completam a cena. O líquido da xícara se espalhou, deixando uma mancha escura e seca na toalha velha, testemunha silenciosa de algo que aconteceu, mas que eu não consigo lembrar ou talvez não presenciei.
Cada detalhe parece gritar que algo está fora do lugar, que algo muito errado aconteceu aqui, mas minha mente ainda está embaralhada, tentando juntar as peças do quebra-cabeça. Fecho a porta da geladeira suavemente, interrompendo o apito insistente que já estava me deixando louco. Nem me preocupo em olhar o que há lá dentro; meus olhos estão voltados para um celular sobre a mesa que acabo de enxergar. Não é meu, tenho certeza. Embora também esteja com uma capa azul, é novo e moderno, enquanto o meu está quase obsoleto. É do meu irmão, reconheço. Olho para o corredor; tudo está silencioso. Coloco a barra de ferro apoiada em uma cadeira e sento em outra, pensativo, enquanto meu estômago ronca de forma insistente. Dois pratos de comida fria me encaram, sem graça, mas eu não tenho escolha. Pego um dos pratos e começo a comer, sentindo algumas partículas de ferrugem transferidas da barra de ferro para minhas mãos estalarem entre os dentes. O alimento borrachudo embola entre os meus dentes. Com esforço, os pedaços mal mastigados atravessam minha garganta em direção ao estômago. Para ajudar a descer o alimento mais rápido, bebo um gole de café frio; o gosto amargo e metálico se espalha pela minha boca, como se eu estivesse bebendo algo morto.
Pego o celular na mão, confirmando ser mesmo do meu irmão. Tento ligá-lo, mas nada acontece; a tela permanece negra, inerte, refletindo minha imagem. Vejo meu rosto com pequenos ferimentos na pele e passo a mão tentando entender. Meus olhos refletem confusão. Coloco o aparelho sobre a superfície de vidro gelada e sem vida, avaliando aquela cena. Então, flashes começam a surgir na minha cabeça: lembranças fragmentadas de uma manhã comum, nós dois sentados à mesa, o café da manhã entre nós. Meu irmão estava aqui para falar da casa. Discutimos, como sempre, desde a morte da nossa mãe há oito anos. A voz dele ecoa na minha cabeça com palavras duras que não consigo lembrar completamente, mas a sensação é inconfundível: raiva ressentimento e um vazio que nunca desaparece tomaram conta de mim. Não sei o que aconteceu; o gotejar no banheiro continua, e sinto uma pontada na cabeça, como se o remédio não tivesse o efeito duradouro que eu esperava. Coloco as mãos na cabeça, encaro o vazio da casa, tentando juntar as peças do quebra-cabeça na minha mente. A mesa, a comida fria, o celular... tudo parece fora do lugar, como se eu estivesse em um cenário que não reconheço mais. Havia mais alguém? Puxo minhas mãos que estão sobre a cabeça e as arrasto para o rosto, esfregando em um movimento ascendente e descendente até sentir minha pele esquentar. Sim, havia uma terceira pessoa, estou lembrando. Era um homem, ele estava atrás da cadeira do meu irmão, com as mãos sobre seus ombros. Ele usava calça e camisa com listras brancas e pretas na horizontal, estava de cabeça baixa, não consigo ver seus olhos, ele tem uma barba grisalha. É alguém que meu irmão conhece, pois ele não parecia se preocupar com aquele homem atrás dele. Tenho a impressão de conhecê-lo, seus traços são tão familiares. Mas minha mente me trai, e não consigo lembrar quem é.
Levanto-me da cadeira com dificuldade e, no mesmo instante, vejo no chão pequenas gotas escuras marcando o piso desgastado. Meu coração acelera e sinto um frio percorrer minha espinha. Dou a volta na mesa e me aproximo das manchas. Ao me inclinar, vejo com clareza: é sangue. Pego rapidamente a barra de ferro que havia abandonado.
Minha mente começa a girar, tentando encontrar uma explicação, mas as imagens que surgem são desconexas e fragmentadas. Sigo o rastro com os olhos, passando a mão sobre a cadeira onde meu irmão estava sentado. O toque da madeira fria me traz mais uma lembrança, um flash da discussão que tivemos. Ele estava furioso, deu um ultimato, mas agora não vejo mais o homem que estava atrás dele.
— Você tem que sair dessa casa! — ele disse. — Já se passaram cinco anos, e você não fez nada para ajeitar sua vida.
A casa é da família da esposa dele, uma concessão temporária para me ajudar após eu perder a casa que herdei da minha mãe, tudo por causa daquele maldito vício em jogo que me consome até hoje. A ideia de deixar esta casa me apavora. Não tenho para onde ir, não tenho condições de pagar o aluguel. A ajuda social que recebo atualmente do governo mal dá para me alimentar. Sair daqui significa morar literalmente na rua.
Volto minha atenção para o chão e acendo a lâmpada do corredor, onde as gotas de sangue já se secaram, criando manchas escuras que se alastram cada vez mais, desenhando um caminho irregular e perturbador. Conforme avanço pelo corredor, o rastro se torna mais denso, mais carregado, até que paro diante da porta do meu quarto. Uma mancha de sangue na porta, como se alguém tivesse apoiado e depois deslizado, deixando marcas inconfundíveis. A partir daquela parte da casa, as manchas se intensificam, como se algo—ou alguém—tivesse sido arrastado pelo chão, deixando um traço de agonia no piso. Viro-me rapidamente, erguendo a barra de ferro, com a sensação de que alguém se aproximava por trás de mim. Não encontro nada nem ninguém. Meu corpo se arrepia todo, sinto um calafrio, uma onda de medo tomando conta de mim, e reconheço como a mesma sensação que sentia quando assistia filmes de terror com meu irmão. Enquanto eu era um medroso compulsivo, ele era irritantemente corajoso.
Apoio a barra de ferro na parede e olho para cima. Meus olhos são atraídos por uma foto, uma lembrança de anos atrás, quando a vida tinha algum sentido. É uma foto de família tirada no dia da formatura do meu irmão em Direito. Ele está no centro, de toga e sorriso largo, nossa mãe ao seu lado, radiante de orgulho. Eu estou ali também, à margem, tentando sorrir. Mas não consigo sustentar o olhar na imagem. Sinceramente, não sei por que ainda mantenho essa foto. Foi um presente de minha mãe, o objetivo dela era me motivar ao ver meu irmão se graduando e seguir nessa mesma direção. Depois de vinte anos, cheguei à conclusão de que não funcionou. Minha vida continua estacionada.
Em um lampejo de raiva, retorno até a cozinha, pisando sobre as manchas de sangue no corredor. Pego uma cadeira, a trago de volta ao corredor e puxo o quadro, que sai com facilidade. Quero quebrá-lo. Ao descer, piso em falso e desequilibro. Primeiro, o quadro cai ao chão, sua tela de vidro quebrando em mil pedaços. Não consigo me manter em pé e o pior acontece: caio, com as mãos abertas sobre os cacos pontiagudos. Sinto pelo menos uma dezena deles rasgando a carne das palmas das minhas mãos. Deslizo pelo chão e um pedaço pontiagudo maior atravessa minha camisa e crava-se entre minhas costelas direita. Solto um grito agudo, que ecoa sonoramente por toda a casa. Naquele instante, nem lembro que eu precisava fazer silêncio. Levanto-me, pisando sobre os cacos que fazem barulho ao serem esmagados pelas solas do meu tênis. Encosto-me na porta do meu quarto em busca de equilibro e sinto um líquido quente escorrendo pela lateral do meu corpo. Com dificuldade, ergo a camisa e lá está ela: a lâmina de vidro enfiada na minha carne. Puxo-a, e o sangue escorre pelo orifício.
Minha visão fica turva, provavelmente por causa da perda de sangue. Permaneço parado por um momento pois sinto que se me afastar da porta vou desabar. O arrependimento começa a me invadir, mas agora é tarde demais. Sempre fui assim, desde a infância: em um momento tinha certeza do que estava fazendo e no outro já estava completamente arrependido. Não mudei nada. Mas agora não há tempo para remorso. Preciso entender o que está acontecendo e rápido.
Respiro fundo e volto minha atenção para uma porta a cerca de dois metros de mim, talvez um pouco mais distante. Ela dá acesso ao quarto de hóspedes, um cômodo que mesmo sendo chamado assim, nunca recebeu alguém. As manchas de sangue, que venho seguindo desde a cozinha desaparecem embaixo dela.
Esse quarto acabou se tornando um depósito de coisas esquecidas, onde coloco tudo que perdeu o valor, tudo que não faz mais sentido. É como um cemitério dentro da casa, um lugar para onde empurro o que quero esquecer. Fico dias sem sequer pensar em abrir aquela porta, e, para ser honesto, não lembro a última vez em que entrei lá.
Sinto uma pressão crescente na cabeça, dor forte, sinais de que outra crise está prestes a se instalar e, agora, não estará sozinha. Minhas costelas doem, minhas mãos doem e até meu tornozelo dói. Retiro alguns pequenos cacos de vidro cravados nas minhas mãos, que começam a ficar ensanguentadas. A casa continua silenciosa, exceto pela minha respiração ofegante e os pingos do chuveiro que vêm do banheiro, que está no fim do corredor.
Não posso ficar aqui impotente. O líquido viscoso desce pela minha perna e chega ao meu tênis. Decido entrar naquele quarto. Três passos e já estou diante da porta. Vacilo por um instante. Um pensamento me ocorre: e se o homem que acompanhava meu irmão estiver escondido dentro desse quarto? Paraliso covardemente, lutando contra minha mente por uns cinco minutos até buscar um pouco de coragem usando uma antiga técnica que o terapeuta da clínica me passou na última internação há mais de oito anos e repetindo as palavras que ele me dizia na época:
— Respire, puxe lentamente a respiração e solte o ar bem devagar. Pense racionalmente, Everaldo. Você não foi o responsável pela morte do seu pai, foi uma fatalidade. Puxe a respiração novamente, é tudo fantasia da sua cabeça, esvazie os pulmões. — Ele repetia isso tantas vezes como um mantra que eu acabava acreditando ser tudo fantasia da minha cabeça. Saí de lá não porque recebi alta, mas para ir ao velório da minha mãe. Nunca mais voltei para terminar meu tratamento. Fato jogado na minha cara por meu irmão sempre que tenho uma nova crise.
Em um impulso, agarro a maçaneta da porta e giro violentamente. Encontro a terceira porta fechada dentro da minha casa. Solto-a com raiva e vejo que a maçaneta está toda vermelha com o sangue das minhas mãos. Parado ali, no corredor, sinto o peso de algo que não consigo lembrar completamente, mas que está à beira de explodir na minha consciência. Minha mente parece estar brincando comigo novamente, oferecendo fragmentos de uma verdade que sou incapaz de enfrentar. O rastro de sangue, as portas trancadas... tudo parece uma brincadeira de mau gosto, empurrando-me lentamente para a beira de um abismo do qual eu não quero cair outra vez. Isso daria a desculpa perfeita para meu irmão me trancar em uma clínica.
Levo as mãos ao rosto e sinto o gosto metálico do sangue na minha boca. Esfrego as mãos na minha roupa na tentativa de limpá-las, mas agora estou coberto de sangue e preciso me lavar urgentemente. Se alguém me visse assim, sem ver o quadro quebrado no chão e sem conhecer o contexto, pensaria que eu matei alguém. Vou para a cozinha e chego até a pia, mas o amontoado de louças e panelas impede que eu lave minhas mãos. Também não conseguiria me banhar aqui; o lugar certo é o chuveiro. O corredor até a porta do quarto de hóspedes está salpicado com gotas de sangue vivas, provenientes do meu ferimento que escorreu pelo tênis e foi pingando enquanto eu me dirigia até aqui.
Volto pelo corredor e paro na frente do quarto de hóspedes. A maçaneta está suja de sangue, e eu olho com mais cuidado o rastro vermelho escuro passando por baixo da porta. Não estou com um bom pressentimento. Ouço mais gotas caindo no chão, o que me lembra de ir ao banheiro para me lavar.
De frente para a porta, sou assaltado por um pensamento perturbador: e se alguém estiver me esperando dentro do banheiro? O desespero toma conta de mim. Nunca fui bom em situações estressantes; meu irmão sempre conseguiu manter a calma. Lembro-me de quando nosso pai caiu do telhado. Eu estava lá em cima com ele. Bem, meu pai não sabia; ele subiu para ajustar a antena de TV, e eu fui atrás dele escondido. Acho que ele se assustou quando me viu, eu ainda cheguei a colocar as mãos em suas costas para segurá-lo quando ele desequilibrou, mas eu era apenas um adolescente e não consegui evitar a queda. Desde então, tenho apagões que prejudicam minha memória em eventos traumáticos. Meu irmão mais novo do que eu, teve a calma de um adulto. Correu para fora de casa ao ouvir o barulho do corpo batendo no muro do vizinho, ligou para a emergência e me acalmou para que eu não pulasse do telhado. Quando os paramédicos chegaram, ele subiu a escada, me acalmou e me trouxe para baixo em segurança. Meu pai sobreviveu inconsciente por sete dias antes de morrer, levando consigo o que realmente aconteceu naquele telhado, porque eu nunca consegui lembrar, nem com terapias e medicamentos.
Volto ao tempo presente rapidamente, o tornozelo ainda dói. Ponho a mão no ferimento na costela e sinto que o sangue parou de sair. Menos mal. Vou até a cozinha, olho sobre a mesa e pego uma faca de serra, que finjo ser uma forma de defesa. Estou com sede, abro a geladeira, que está quase vazia, exceto por garrafas, a maioria vazias, um pedaço de pizza seco e duas latas de cerveja. Pego uma garrafa pela metade e bebo um gole rápido, sentindo o líquido gelado rasgar minha garganta. Sem pensar, jogo a garrafa na pia, que se choca contra as louças e ecoa na cozinha e subitamente determinado agarro o ferro com uma mão e empunho a faca com a outra. Próximo ao quadro espedaçado, olho rapidamente para trás e vejo que deixei a geladeira aberta, mas decido não voltar para fechá-la. Não tenho tempo para esse capricho.
De frente para o banheiro novamente, empurro a porta com firmeza. Ela se abre facilmente, revelando o box de vidro transparente. Nada. Nenhuma sombra se move ali dentro. Para ter certeza, empurro a porta contra a parede com uns dos pés, esperando resistência se alguém estiver escondido atrás, a sola do meu calçado deixa uma marca de sangue na madeira. Por sorte, o pequeno cubículo está iluminado. A porta desliza suavemente até parar com um leve toque da maçaneta na parede. O banheiro está completamente vazio.
Deixo a faca e a barra de ferro do lado de fora e entro. No espelho, vejo meu reflexo. Meus olhos estão arregalados, cheios de medo. Aproximo-me mais e percebo que o sangue no meu rosto começou a coagular. Abro a torneira, deixando a água correr. Primeiro, lavo as mãos, depois esfrego o rosto. A água, tingida de vermelho, escorre pela pia. Ao lado do recipiente de sabonete líquido, noto meu barbeador, ainda com fios de barba presos a ele. Meu rosto está limpo, mas eu não me lembro de ter feito a barba hoje, mal feita por sinal. Vejo pequenos cortes no rosto, certamente do barbeador. Meu pai ensinou meu irmão a se barbear assim que os primeiros fios de barba apareceram em seu rosto, mas eu tive que aprender sozinho.
Desvio o olhar para a direita e vejo o vaso sanitário sem tampa, encardido, coberto por marcas escuras que revelam o descuido de dias sem limpeza. Meu celular está dentro da privada, afundado na água, encharcado. Que droga! Como ele foi parar ali? De qualquer forma, deve estar aí desde a manhã; não serve mais para nada. Se meu irmão não lembrar que esqueceu o dele aqui, talvez eu possa ficar com ele. Conheço um cidadão no bairro que o reconfiguraria por vinte reais.
Preciso de um banho. Entro no box, tiro minhas roupas e, antes de mais nada, abro a janela, jogando as peças para fora. Ao meu redor, as paredes estão sujas, manchadas de umidade, com musgo se acumulando nos cantos. Marcas de sujeira e descuido cobrem a cerâmica, que em algum momento foi branca, mas agora está tingida de tons amarelados e acinzentados, fruto da minha negligência.
Ligo o chuveiro e deixo a água quente cair sobre meu corpo, lavando o sangue das minhas costelas. Gostaria que ela lavasse também o peso esmagador que sinto na alma. Vejo a água tingida de vermelho escorrer pelo ralo e desejo que a dor de cabeça fosse embora junto com ela. Mas, em vez disso, a dor lateja com mais força, intensificando-se a cada segundo. As paredes ao meu redor parecem fechar-se sobre mim, causando me um pequeno surto de claustrofobia.
Desligo o chuveiro, sentindo o pânico tomar conta de mim. Tento compreender o que aconteceu, mas nada faz sentido. Minha mente luta para juntar as peças, mas o quebra-cabeça é vasto e incompleto, deixando-me à mercê de um mistério que parece insuperável. As paredes sujas são um lembrete silencioso do abandono, tanto externo quanto interno, que me envolve. Viro o corpo e deixo-me escorregar com as costas arrastando na parede até o chão gelado do banheiro. Quero entender o que houve, mas, antes que as respostas cheguem, apago novamente.
Acordo com a dor de cabeça ainda presente, lembrando-me cruelmente de que estou vivo. Olho ao redor, sem saber ao certo quanto tempo se passou. Ainda estou com fome; sinto meu estômago roncar, e a geladeira na cozinha voltou a disparar seu apito indesejado. Arrependo-me de não tê-la fechado. O chão, onde sentei, está praticamente seco, assim como meu corpo. Sinto algo batendo levemente na cabeça então passo a mão pelos cabelos notando que estão úmidos. Olho para cima e uma gota de água do chuveiro cai, atingindo-me no topo da testa.
Meus olhos se voltam para o fundo do box, e meu coração gela ao perceber que minhas roupas estão ali. Eu tinha certeza de que as jogara pela janela. Levanto-me rapidamente, esquecendo momentaneamente do ferimento na costela e do tornozelo torcido. Mais uma maldita gota de água do chuveiro atinge o topo da minha cabeça. Aproximo-me das roupas, que são meu pijama de listras brancas e pretas horizontais. A água ensanguentada deve ter chegado até ele, pois está úmido e avermelhado. Pelo volume, deduzo que há algo embaixo. Com um dos pés, arrasto a roupa encharcada de sangue. Minha cabeça parece que vai explodir dessa vez. Primeiro, surge uma barra de ferro. Puxo mais um pouco do tecido e percebo que a tal barra é na verdade o cabo de uma marreta toda feita do metal pesado. Estremeço e preciso me apoiar na parede para não cair. Puxo mais um pouco do pijama e ele revela uma faca de serra e, por fim, reconheço o molho de chaves da minha casa. Olho para trás incomodado com o barulho das gotas de água que insistem em cair. Do lado de fora, o sol está um pouco acima da linha do horizonte, irradiando luz natural dentro do banheiro. Concluo que ainda não anoiteceu; a única escuridão aqui é a que está dentro de mim.
Levo a mão à boca, tentando conter uma confissão indesejada, mas não consigo impedir que um sussurro escape por entre meus lábios...
“O que eu fiz?”
Por: Pedro Trajano
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